No ultimo domingo, 29 de setembro, foi realizado um evento na praça de Roda de Fogo, comunidade que carrega na sua história a resistência popular e a luta diária contra os desmandos do sistema. O sol brilhava e coloria o domingo enquanto as crianças brincavam, o futebol rolava e o sk8 riscava o chão. Os sons que ecoavam na praça se misturavam com as batidas da capoeira, que anunciava a I Roda Cultural, deixando uma expectativa de que este dia, de exaltação à resistência, seria diferente. Mas, a Polícia Militar não viu dessa forma; para essa corporação é só mais um dia de guerra de baixa intensidade, numa das várias áreas de “risco social” da periferia de Recife.
“Mão na cabeça!”, o policial já ordenava com a arma em punho. “Isso aqui é arte”, retrucou com a mão melada de tinta uma das pessoas que ornamentavam a praça. Três pessoas acabaram sendo encaminhadas para a Delegacia da Várzea. As câmeras da praça pegaram até o nome da tatuagem de um dos “acusados”. O vigiar e punir vem sendo aplicado a risca pelo Pacto Pela Vida da Secretária de Defesa Social (SDS). A humilhação diária do povo negro e periférico agora é gravada em qualidade digital, mas os capatazes ainda recebem ordem dos mesmos senhores do poder.
O boicote foi explícito e a imposição de poder veio como um aviso à comunidade. Numa tarde de domingo, onde a população ocupava legitimamente um espaço de sociabilidade, o Estado intervém para participar ao seu modo: de maneira violenta, punitiva, racista e criminalizadora. O direito de ornamentar e decorar a praça foi caçado. O curioso é que foram disponibilizadas seis viaturas policiais – duas delas chegaram à praça, e mais quatro mantiveram-se no aguardo, nas proximidades – para prender três pessoas que ao fazerem arte, com rolinhos, spray e tintas acrílicas, foram acusadas de danificar o patrimônio público.
Já na delegacia, a ironia dos comissário civis. Piadinhas e acusações. Para além da moral da lei, a moral dos que aplicam a lei. Ambas determinam como se deve andar na linha. Ambas concentram poder. Ao final do procedimento burocrático padrão, que traz consigo o constrangimento e a submissão, a acusação de “pichar edificação ou monumento urbano”.
A naturalização da opressão é quase inevitável. A pipa, bicicleta e sorrisos convivem com as viaturas, sirenes e câmeras corriqueiramente. O beijo, abraço e carinho agora são filmados e compartilhados com a Policia Militar. Estamos vivendo numa ficção científica? Onde a vigilância 24h chegou antes do saneamento básico e da moradia digna?
Mas a festa na praça não parou. Resistir é também insistir e driblar quando necessário. Continuar é importante, para a jurema se fazer presente, como se fez. Para a capoeira se fazer presente, como se fez. Para o coco se fazer presente, como se fez. Driblando séculos de opressão. E os que passavam pela praça dançaram com seus sons. A exibição do vídeo “Roda de Fogo – Cidade Encantada” acionou a memória dos presentes, que vibravam cada vez que um conhecido aparecia contando a história da comunidade. Muita energia. Força. Finalizando o momento, mais artistas locais afirmaram seu espaço, ao som da voz e do violão ou pesando com as guitarras e bateria.
A Roda da Cidade encantada não parou de girar em rodopios surpreendentes confundindo até as gravações em 360 graus da câmera de segurança da SDS. As histórias não negam que Roda de Fogo resiste e luta há décadas. Todos os ritmos musicais ecoaram o poder da transformação da cultura, recarregando as forças para enfrentar a ausência de saneamento básico, posto de saúde precário e transporte público degradante.
La.M.A. – Laboratório de Mídias Autônomas